sexta-feira, 30 de maio de 2008


Talvez fosse a noite mais fria do ano, ele pensou, enquanto descia a ladeira rumo ao ponto de ônibus em passos rápidos, que só não eram ritmados por causa das poças que lhe forçavam um desvio de pernas. Estava absurdamente frio, o termômetro naquela sexta, naquela noite, marcava 4 graus, e ele descia, escondendo o frio das mãos nos bolsos da calça jeans, com a cabeça abaixada coberta pelo gorro da blusa, prestava atenção onde pisava onde não pisava, levantando a cabeça de vez em quando para ver lá embaixo uma pequena luz que piscava no ponto de ônibus, que visto ali de cima o fez imaginar um vaga-lume, até que de algumas piscadas apagou-se de vez, sobrando para ele que estava no meio da ladeira, nessa outra metade que restava, continuar descendo olhando as luzes dos postes refletidas no chão molhado, o ponto, e a fumaça branca que saia da boca e ficava pra trás, enquanto tremia, o corpo, os dentes, o rosto cortando o vento gelado que batia de frente. Ele; A Solitária maria-fumaça que descia os morros de Minas Gerais, se equilibrando entre os trilhos congelados. Um passo a pós o outro, uma poça após a outra.
Chegou ao ponto de ônibus, que possuía um banco, em que na ponta estava sentada uma moça, ele sentou-se na outra extremidade. Sentado, no relógio de pulso viu que eram 23 horas, tinha ainda vinte minutos para ficar ali, encolhido, passando o tempo, o frio, feito pombo, e de esguelha tentando descobrir qual nas mãos da moça era o livro cujas páginas, não fosse pela luz do poste ali no canto, teriam suas palavras apagadas na escuridão. Observou que a rua estava solitária, nenhuma pessoa indo, nenhuma voltando, sem carros, cachorros, sem gatos – que nessas horas são normais de ser ver por ai a perambular em movimentos lentos e enigmáticos -, as casas pareciam todas abandonadas por seus donos – algumas luzes acesas, outras apagadas, mas em nenhuma um momento vivo de apagar, ou acender - como se estivessem à espera de uma inundação, de um quebrar de barragem, o segundo exato em que haveriam de morrer afogadas.
As casas já haviam sofrido demais por aquele dia por conta da água que viera de cima em pingos grossos, retos, quebrados perpendicularmente em suas telhas por cerca de 3 horas. A chuva havia parado há uma hora, e ele não precisou tirar o guarda-chuva da mochila, pois estava em aula enquanto acontecia o dilúvio, e quando saiu da faculdade, as nuvens já haviam se liquefeitas. Ele sentiu pena da moça ali ao lado. Ele observava o vapor quente que saia da boca toda vez que soltava o ar, encheu os pulmões o máximo que pôde e soltou vagarosamente formando uma risca longa de vapor que subia, subia, subia, feito avião que passa riscando o céu deixando rastro de fumaça branca que se apaga no decorrer das horas. O vapor ia subindo até que bateu no teto de alumínio. Ele com o olhar acompanhava no teto a reta imaginária que ligava um ponto, um parafuso, ao outro. A reta levou seu olhar até o canto direito – mais pro lado onde a moça estava – em um ponto em que a imaginação da reta se tornava curvilínea afim de desvia-la das pichações feitas com corretivo naquela região da chapa que os cobria. O corretivo, que era feito pra apagar, escrevia declarações de amor, corações, símbolos de anarquia, datas, palavrões, e ele lia todos com certo esforço pois alguns cobriam outros. Houve um em que perdeu algum tempo, não conseguia e nem conseguiu decifrar o nome da amada – “ Juliana eu te amo”? ou seria “ Poliana”? – em que no pingo do “ i “ havia um pingo d’água, um furo pelo qual o que restou da chuva passava gota por gota, e ele as via caindo no chão perto dos sapatos úmidos da moça, perto da sombrinha molhada, lhe causando pena pelo frio que ela a espera do ônibus, de cadarços desamarrados e pés gelados, sentia.
Olhou para o relógio no momento em que os ponteiros marcavam 23 horas e 10 minutos, e notou que desde o momento em que chegara ali no ponto, a moça que estava cabisbaixa em sua leitura com os cabelos castanhos soltos caídos nos ombros no rosto bochechas, só levantava a cabeça para olhar lá em cima no ponto mais alto da ladeira, permanecia o olhar lá por alguns segundos e então o trazia de volta descendo, até chegar no livro, que não mudava de página. Ele não entendia como em dez minutos de leitura, ainda não tinha visto na moça um gesto de folhear. Enquanto ela lia, ele a via, imaginava o rosto escondido entre os cabelos, que só podia ser visto quando ela se virava para olhar lá em cima. Tinha vontade puxar assunto, mas lhe faltariam as palavras, e mesmo que as encontrasse, lhe faltaria a coragem, e essa, não se acha assim em qualquer ponto de ônibus. Enquanto a olhava pensou que ela poderia ser sua namorada, amiga, inimiga, poderia ser lésbica, chamar-se Maria, Cecília, Penélope... ficou impressionado com o mundo-possibilidades de estórias que sua mente pôde inventar para aquela mulher, e ficou decepcionado pois não passaria de ficções, aquela a moça até aquele momento não passava de uma “ela” com rosto de anjo que lia, relia, cinco, dez, mil vezes, a mesma página de um livro, à espera de um ônibus, na qual ele queria transformar em “você”.
Nos 10 minutos que ainda tinha, em busca de uma distração, abriu o zíper da mochila, a mão tateava as apostilas e abria caminho até chegar no livro de bolso escondido no fundo da bolsa, puxou-o para fora, e a partir do parágrafo onde havia parado da última vez, deu seqüência a leitura. Quem sabe assim talvez o tempo passasse imperceptível, e ao levantar os olhos, aqueles 10 minutos já lhe fossem coisa do passado, o frio, aquela sensação de que toda rua, bairro, cidade, toda Minas Gerais havia se paralisado, se esgotasse ao passo em que a roleta do cobrador e roda do ônibus, girassem, fazendo o mundo, de novo girar.
No oitavo minuto, a atenção voltada pro livro foi quebrada com o farol e o som do ônibus, que como quem explora com tocha na mão o interior de uma caverna, lá de cima vinha descendo perfurando o silêncio e a escuridão que até então vigorava. Marcou a página, fechou o livro, o colocou ao seu lado na parte enferrujada do banco azul, e fez correr o zíper da mochila mais rápido que o busão descia. De novo através do tato, buscou a passagem no bolso lateral e a prendeu entre o indicador e o polegar enquanto se levantava e ajustava a alça nos ombros. De pé, cabeça baixa, no chão viu a sombrinha, da moça também em pé.Quando pensou que ela poderia esquece-la para que ele a entregasse quando dentro do busão, e ela o agradecesse, ambos nas poltronas um ao lado do outro, ele perguntasse seu nome, e ela. Ela se agachou e se levantou com a sombrinha debaixo do braço.
A porta aberta na beira da calçada, pela primeira vez seu olhar cruzou-se com o dela, durante um segundo. Ele entrou primeiro, se equilibrando no corredor ia andando até se sentar, enquanto atrás vinha ela, sombrinha de baixo dum braço livro debaixo do outro, em passos lentos, que só não eram ritmados por causa do balanço do ônibus, um poste após o outro, uma poltrona após a outra, até chegar próximo dele, e sentar-se ao lado, lhe entregando o livro que esquecera na ferrugem do banco azul la no ponto, e logo em seguida, ela: Qual seu nome? .

Posted by Postado por Gian Carlo às 11:43
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