quarta-feira, 10 de dezembro de 2008


Durante os cinco anos em que sustentava como podia aquele emprego na Agência dos Correios subindo e descendo ladeira montado na bicicleta amarela, que fazia chegar um pouco menos atrasadas, as cartas dos remetentes às mãos dos destinatários, José Carlos não havia visto coisa tal parecida como a que viu naquele dia, com certo estranhamento. O fato é que José, o carteiro, no momento em que passava o envelope branco pela fresta de uma caixinha de correio , viu de relance, ainda antes da correspondência cair pro lado de dentro, que o endereço da pessoa que a enviou, era o mesmo (com uma unidade acrescida no número da casa) endereço da pessoa que agora a recebia. Procurando uma explicação para o fato de alguém enviar cartas a um vizinho, matutando os motivos que levaria a uma pessoa fazer chegar pelo correio o que pelas próprias mãos chegaria mais rápido, empurrou, ainda sob o efeito do estranhamento, a bicicleta com a sacola de envelopes para próxima residência que haveria de diminuir em algumas gramas o peso que carregaria pedalando de volta pra agência no fim do dia. Era uma casa azul, vizinha a casa anterior, José meteu a mão na sacola, puxou de lá a carta, e de novo o relance de ver que o endereço de quem a enviava, era o mesmo (só que dessa vez com uma unidade subtraída no número da casa) endereço da pessoa que a recebia. Naquele mesmo dia, de noite, enquanto sua mulher tinha misturado às lágrimas o reflexo das cebolas que descascava, José, que sempre sentava a mesa da cozinha enquanto a mulher preparava a janta, pra contar as coisas que via enquanto pedalava pelos morros da cidade com sacola de correspondências, disse:
– Ora mulher, não sabe o que aconteceu hoje! Enquanto punha na caixa de correio de uma casa que fica lá pros lado do bairro norte, eu vi que quem enviava era o próprio vizinho, e como se já não bastasse, quando passei pra casa do lado, era esta agora que era o destinatário de quem a pouco foi remetente. Não acha curioso?
A mulher, que agora jogava as rodelas de cebola misturadas aos cubos de carne no óleo da panela, depois de fingir que refletia sobre o que o marido havia dito, enquanto mexia tudo com a colher de pau, só podia concluir o que nesses cinco anos concluía quando o marido se punha a conversar uma conversa que só ele falava e ela fingia que escutava:
- Essas coisa acontece, bem.
José Carlos, que não percebia a indiferença com que a mulher respondia sempre as mesmas frases pra ver se ele parava de falar um pouco, pôs–se a falar ainda mais:
- Acontece? Ora, não sabe mesmo o que diz mulher, se é certo que são cinco anos que leio endereços de quem manda e quem recebe, é certo também que nesses cinco, é a primeira vez que vejo na distância que separa o endereço da frente do endereço do verso, o espaço de pouco menos que alguns passos. Já é estranho que se comunique por carta duas pessoas cuja distância que separa os corpos não ultrapassa mais que alguns metros, e que bastasse a um dos interessados tirar a bunda do sofá e gritar o vizinho no portão para que este saísse, e tivessem ali um dialogo de dez minutos que o grafite de um lápis inteiro não escreveria no papel. Eu ainda poderia supor que esses dois sustentam uma paixão pela palavra escrita, e que portanto, compartilham um com o outro tanto a paixão de escrever, como a paixão de ler e ser lido, mandando e recebendo cartas, mesmo que estranho seja o fato de estarem vivendo um ao lado do outro. Mas aí se utilizarem dos serviços do correio pra fazer chegar, com dias de atraso, as cartas, que se eles mesmos estivessem dispostos a levar um a casa do outro poderiam ser lidas antes mesmo que a cola que fecha a correspondência secasse no envelope, me parece algum tipo de zombaria com velho bobão aqui, que pedala, pedala, pedala, pra atravessar a cidade e por embaixo do nariz de ambos o que na verdade já lhes estão ao alcance das mãos. Mas é pra isso que sou pago né? Fazer o que. Deve ser culpa dessas propagandas do Correio que vêm passando no intervalo das novelas, aquela que mostra cruzando o céu do Rio de Janeiro um avião que tem no lugar das rodas, duas patas de pombo que seguram uma carta, e deixam cair nas mãos do Cristo Redentor, o envelope com o carimbo que promete agilidade. Deve estar iludido mesmo esse povo que pensa que suas cartas serão levadas por aviões de um bairro para o outro, quando na verdade, nessa cidade nossa que nem pista de aterrissagem tem, é a bicicletinha velha do Zé aqui, que transporta o assunto dos outros.
José se calou um pouco enquanto espetava os palitos de dente na toalha da mesa. A esposa, que dessa vez deixou de prestar atenção no chiado da panela pra ouvir um pouco o homem que escolheu pra viver junto há vinte anos, era da opinião de que:
- Ah José, cinco anos que faz chegar aos olhos de uns, a caligrafia de outros, e ainda não aprendeu que nas linhas de uma carta cabem tanto de nós mesmos que já as cordas vocais não podem vibrar, assim como cabem nas nossas vozes, talvez mais por uma variação de entonação do que pela escolha de palavras, tanto de nós mesmos que já não o verbo escrito pode expressar. Deixe que esses dois compartilhem entre si essas mensagens, e cumpra seu papel de mensageiro sem reclamar. Ora, de qualquer jeito você vai praqueles cantos entregar a carta de outros mesmo, aproveita e entrega as cartas desses dois aí. Afinal, como você mesmo diz, Fazer o que? É pra isso que você é pago né? E pense que, não fosse esse pagamento que vem no fim do mês, não teríamos hoje aquela panela cheia de carne e cebola, que as crianças tanto gostam.
A mulher disse isso com as mãos postas sobre a mão do marido, que segurava a metade do palito. Quando terminou, saiu e foi chamar as duas filhas que estava no quarto trocando as cabeças das bonecas. José comovido com as palavras da mulher que escolheu pra viver junto há vinte anos, e que há vinte anos não punha sua opinião posta a mesa como pôs naquele dia, percebeu mesmo que a esposa tava certa, a situação era pouca água no copo pra tanta tempestade. Entre uma e outra censura da mãe que corrigia as filhas por brincarem com a comida, José até pensou que seria excitante ser intermediário daqueles dois que se escreviam. Ignorava os motivos, e o conteúdo das cartas, se fosse para dar um palpite, Zé diria que estaria ali o inicio de um romance. No correio há cinco anos, sustentava uma pança que não perdia jamais com os esforços montado o dia inteiro na bicicleta. Quando já havia mandado pro estomago toda carne que havia no prato, enquanto palitava os dentes tirando os fiapos que ali insistiam em ficar,ainda na mesa, de frente pra esposa que dava de comer na boca da mais nova, pensou na semelhança física que ele tinha com um pombo, e como um pensamento leva a outro, pensou que não seria nada mal se aqueles dois, caso fossem mesmo, dois que se amavam, fizessem dele, o pombo-correio. Afinal, ele que olhava a esposa desmanchando a carne pra filha digerir melhor, percebia que era eternamente grato ao homem que há vinte anos fazia com que seus bilhetes chegassem até a mulher que o fazia revirar nos lençóis marcando o encontro escondido atrás do muro da igreja durante a missa de domingo, a mesma igreja em que se casou, com a mesma mulher pra a qual agora olhava com cara de eu te amo.

Posted by Postado por Gian Carlo às 21:36
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