quinta-feira, 10 de julho de 2008


*texto baseado em um sonho.

Mantínhamos nossa amizade a base de vodka, cigarros, você, eu, e a Milena deitada debaixo da mesinha de centro, invariavelmente às noites de sábado na sala do meu apartamento. Lembro-me que nos primeiros sábados, o agosto no qual ainda não nos conhecíamos intimamente, e você era tão novidade pra mim quanto eu pra você, enquanto separava da caixa de leite um copo pra mim e uma tigela pra Milena, eu corria da cozinha pra sala e atendia ao telefone. Era você me ligando logo cedo, me pedia um pedaço daquele sábado, um pedaço da minha sala, do meu sofá, e não pedia pedaço algum de mim, porque desde o dia em que nos conhecemos lá no pátio do Departamento de Letras, já sabia que me tinha, sem precisar pedir. E eu dizia que sim, você pode vir em casa nessa noite, e marcávamos as oito. As oito o interfone tocava, o elevador subia, você: uma garrafa de vodka na mão, um maço de cigarros no bolso, na porta do meu apartamento. Compartilhávamos a vodka do mesmo copo, pra acender os cigarros, a chama do mesmo fósforo, e falávamos pouco em meio aquele sentimento de fracasso que sentíamos por de domingo a sexta termos em nossos diários, páginas de um deserto, e aos sábados a introdução de dois personagens, que morrem de sede, cansados por não ter o que escrever. Dois meses depois, o telefone nem tocava mais, a certeza de que você apareceria em casa de noite, era tão certa quanto à incerteza que eu tinha das coisas, todas as coisas, exceto o fato de você vir, sempre vir. Sei que são dois meses porque faço das garrafas vazias enfileiradas, o calendário de nossa amizade, uma para cada semana, a décima tem no rótulo a marca do batom seu: o dia em que você chegou sem avisos, e da sacada que dava pra rua, beijou a garrafa enquanto olhávamos o movimento das quatro patas de Milena que sem esforço, sem dificuldade alguma, andava de um lado para o outro, equilibrada no peitoril do sétimo andar daquele prédio, diante de nós, desequilibrados, alcoolizados, imaginando que se saltássemos dali pra baixo, talvez cairíamos em espiral, que se saltasse eu, só existe um que sentiria minha falta: você; que se saltasse você, só existe um que sentiria sua falta: eu; e que pra evitar tais ausências em nossas vidas, no dia em que saltasse um, saltaria também o outro, sem deixar bilhetes. Dois meses foram o tempo que levou para sentirmos um pelo outro algo que nunca havíamos sentido por ninguém, por nada, nem por nós mesmos. Éramos sensíveis um ao outro, sem permitir que palavras descrevessem tal sentimento. Talvez de uma forma racional, palavras como, amor, amizade, compaixão, cumplicidade, carisma, e outros clichês, fossem perfeitamente cabíveis a aquilo que dentro de mim pedia você, e vice-versa; mas preferíamos acreditar que o que vivíamos era um relacionamento sem nome, definição, signos, indecifrável, e intraduzível. Particularidade minha e sua por outros jamais explorada, é esse sentimento que experimentávamos, adeptos dessa droga, que vicia, que não mata, da qual não quero me abster. Encontramos um no outro, o útero do qual renascíamos. Vivíamos o auge de nossos 20 e tantos anos, trancados, enclausurados, seis dias por semana em nossas profundezas abissais, a espera de uma frincha de luz que cortasse o escuro, e cortava, aos sábados. Houve um momento em que, isso que vivíamos juntos, tornou-se tão forte e tão vivo e tão maduro e doce, que simplesmente não conversávamos mais. Você chegava, e a única frase do dia era – trouxe a vodka? – e você respondia – com certeza. Foi nesse momento que o roteiro do drama que contracenávamos no meu apartamento, trazia no diálogo duas frases, secas, que dava início a uma improvisação que só terminava no dia seguinte, domingo. Improvisávamos em noite silenciosa, calma, câmera-lenta, que se desenrolava no tempo, proporcionalmente à fumaça do cigarro que subia no ar como um ritual de serpente, naja que sai do jarro hipnotizada pela flauta, até depositar no teto o veneno, a nicotina; à letargia da língua molhada de vodka; ao desenrolar da calda da gata Milena; e nos afogávamos na trilha sonora: Maré, de Adriana Calcanhotto. Extinguimos de vez as palavras de nossa comunicação.Não falávamos porque não sentíamos que precisávamos falar, afinal havíamos chegado juntos a um ponto em que sabíamos, que quando eu dizia – trouxe a vodka? – o escondido era – você me ama? – e quando você me dizia – com certeza – o escondido era – é pra sempre. Pensei em te dizer que você é a parte da minha vida da qual não me arrependo, a que valeu a pena, a que amei, a que fui amado, a parte que aprendi a deixar de falar do amor para senti-lo, e é por você ser todas essas partes que te digo que você não foi parte alguma, foi o todo do qual eu era feito. E agora sou pouco, sou resto, e sou ruína. Porque não somos mais nada. Porque no sábado passado você me disse que ia embora. Porque você foi, naquele sábado que sem motivos, explicações, e piedade, você me disse de dentro do elevador olhando nos meus olhos vermelhos de lágrimas, que no dia em que eu sentisse falta sua, que eu lhe escrevesse uma carta recordando isso que podemos chamar de “nós”, para que assim, você voltasse. E no momento em que nosso olhar foi cortado pelo fechar da porta do elevador, eu voltei pro meu apartamento, pra Milena, pra aquele sábado, sem você, sem mim mesmo, e percebi que ao passo em que morríamos, nascia uma carta, escrita que: Mantínhamos nossa amizade a base de vodka, cigarros, você, eu, e a Milena deitada debaixo da mesinha de centro, invariavelmente às noites de sábado na sala do meu apartamento.


Você ainda trará a vodka?

Posted by Postado por Gian Carlo às 17:13
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